13 junho, 2006

História sobre histórias (com direito a bruxa e final feliz)

Ensino fundamental, médio, faculdade, cursos... Foram vários professores. Nenhum como aquela. Era 1993, eu estava na terceira série do primário e não tinha um dia sequer em que um coleguinha não caísse no choro por causa dela. Uma bruxa mesmo. Então, daqui por diante, ela será chamada de Bruxa. Toda semana tinha a "Hora da Biblioteca" e a Bruxa nos levava até lá para escolher um livro e levá-lo pra casa durante uma semana. Frustrante. Primeiro porque era UMA LONGA SEMANA pra quem lia o livrinho em minutos e segundo porque a Bruxa tinha surtos se um aluno mais curioso intelectualmente lançasse olhares cobiçosos para a prateleira onde estavam os livros "dos grandes": Coleção Vagalume, aqueles livros fan-tás-ti-cos do Pedro Bandeira, Ilha do Tesouro, etc... A Bruxa gritava, sacudia os braços, ficava roxa:

- Não, fulano! É aqui! Já disse que é aqui!!!! Eu não disse?!

E lá ia o menino se contentar com a vigésima oitava versão do Patinho Feio, Chapeuzinho Vermelho e afins. Aquilo me revoltava porque obviamente eu era uma daquelas que ficava namorando os livros maiores. Não tenho idéia de quantos alunos ela conseguiu desestimular qualquer hábito de leitura, mas a minha teimosia venceu e cativou uma aliada: A bibliotecária que me ajudava a contrabandear livros "dos grandes" pra casa. Ela escolhia o livro e me entregava escondida no final da aula. O contrabando bem embaixo do nariz da professora durou quase todo o ano, até o dia em que caí na asneira de abrir a mochila enquanto a Bruxa estava por perto. Mais eficiente do que o radar dos morcegos ela girou e deu de cara com algum exemplar da coleção vagalume. Arrancou o livro da minha mochila, pegou o meu braço e saiu me arrastando pelo corredor até a coordenação. Furiosa, chegava a bufar. Olhava pra mim (e até hoje me lembro daquele olhar de louca varrida):

- Tu vai ver o que a professora Oseni vai fazer com quem ROUBA assim!

Abriu a sala da coordenação, me empurrou pra cadeira bem na frente da coordenadora.

- Ela ROUBOU o livro, professora Oseni! ROUBOU!

Gelei até a medula. Sentia que ia chorar a qualquer momento.

A professora Oseni olhou pra mim com toda a calma. Hoje desconfio que ela já estava acostumada com os achaques da Bruxa.

- O que aconteceu, Daniela? Pegaste esse livro na biblioteca?
- Peguei.
- Escondida?
- É...
- Sabe que é feio e errado fazer esse tipo de coisa, não sabe?

Pediu pra professora sair e me olhou em silêncio (também me lembro desse olhar até hoje. Atento, carinhoso, tranqüilo. Podia ter me feito cair no choro também, mas pelo contrário, me devolveu a confiança).

- Mas tu não roubaste, né?
- Não.
- E por que pegaste?
- A moça da biblioteca me empresta. Eu já li todos os livros menores. Quero ler outros agora...
- Gosta de ler?
- Gosto.
- Sabe, eu li aquela história da panela que você escreveu. A da panela, a do ladrão da lua, a da menina que encontra a pedrinha brilhante...
Sorri.
- Gostei muito, sabia?
- Obrigada.
- Então a gente vai fazer o seguinte...
Pegou uma folha de papel, escreveu alguma coisa e carimbou. Ela sorria.
- Aqui, ó... Isso é uma autorização que você vai entregar pra professora. Com ela você vai poder pegar qualquer livro da biblioteca que quiser.

Peguei a folha, agradeci e voltei pra sala. Entreguei a autorização pra Bruxa que me olhou de uma forma com que fui olhada algumas outras vezes nesses treze anos. Aquele olhar que tem intenção de assustar quando se sabe que é inútil tentar outra coisa. Mas não me assustou. E não me assusta até hoje. Sentei e me apressei em copiar o texto que ela tinha passado no quadro. Logo seria a "Hora da Biblioteca" e tinha muita coisa legal por lá.

A professora Oseni não foi a primeira nem a última pessoa que me estimulou a ler, mas junto com a bibliotecária e a minha vizinha de andar no prédio onde morei, foi a mais importante. E hoje percebo o quanto isso é necessário pra qualquer um. Meu sobrinho, por exemplo, fez um ano ontem e já tem uma coleção de mais de vinte livrinhos (Ainda quero dar pra ele de presente um exemplar do "Soprinho"). Se diverte com eles como se fossem brinquedos. E que seja assim. Que rasgue, folheie, desenhe neles, como eu fiz. Que se familiarize com as letras, páginas, com o cheirinho fantástico de livro novo e de livro velho, como eu fiz. E que ele tenha acesso a eles, que ele seja criado pra ser um leitor. E que todas as crianças (e adultos também) tenham ao menos uma pessoa pra estimular esse hábito. Como eu tive.

E quanto à Bruxa? Bom, o ano terminou e ela desapareceu do colégio. Vi ela novamente há uns meses atrás quando estava levando a minha prima na Feira do Livro de Porto Alegre. Me olhou nos olhos e não sorriu. Encarei de volta. Sorrindo. Se ela lembra de mim? Não sei. Talvez lembre da menina contrabandista de livros ou talvez da menina que, em outra ocasião, fingiu muito bem um estouro dos tímpanos ao ouvir os berros dela, deixando a mulher horrorizada, pálida e com os olhos do tamanho de pires.

De qualquer forma, devem ser ótimas lembranças. Pra mim são ;)