Era uma vez um homem plácido que devotava a vida ao exército e tocava tuba na banda marcial para amansar uma incômoda veia de artista. Um dia, sem mais, ele pegou o filho que tinha, encostou a cabecinha assustada na sua têmpora esquerda e uma arma na têmpora direita. E disparou. E morreu. O filho? Restou inteiro, apenas exalando pólvora e medo. Até hoje, ninguém sabe o porquê. E se sabem, escondem. Mas não falemos desses seres tão passionais, os mortos.
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Era uma vez um homem moreno de olhos castanhos e oblíquos. Andava rebolando tal como criada na feira e tinha ares afeminados, desnecessário dizer. A cunhada, disposta a "curá-lo", convence uma moça loira, de olhos azuis e uma vida inteira dedicada à lupanares a transformá-lo em senhor casado. Em nome dos secretos, contundentes e intrometidos argumentos da cunhada, casam. Mas nem mesmo seus genes, vivos em uma terceira pessoa, conseguiram entrar em harmonia naquela união sem propósito: No afã e ainda à sombra da interferência da cunhada nessas duas vidas alheias e demasiado opostas, geram um belo filho bicolor: A metade direita dos cabelos era castanha e a outra, loira. Um olho castanho e outro azul. Ambos com uma profunda sombra de desesperança herdada.
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Era uma vez um menino com longos cílios de crina de cavalo. No desespero de ver aquelas pestanas criando vida e comprimento dia após dia, dando ao filho um aspecto de boneca, a mãe lhes passa o fio da tesoura, livrando-o do destino de boneca e legando ao filho um permanente ar de fantoche com olhos de botão.
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Aos oito anos mergulhou o dedo no centro morno do chocolate recém derretido e ali descobriu que a cozinha era uma fonte inesgotável de prazer para os sentidos: O marrom aveludado do creme fazia os olhos anteciparem o doce que a língua só provaria mais tarde, as cortinas, as colheres de pau, os tachos e ela própria recendiam a cacau e baunilha enquanto o dedo no chocolate testava a temperatura e a cremosidade ideal... Outro prazer assim, capaz de envolvê-la por inteiro e ser igualmente absorvido por ela, só encontraria anos mais tarde. No sexo.
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Caros,
A vida, em si, é um prefácio.
18 março, 2007
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